POR LÍVIA MARTINS - REVISTA VEJA - 25/07/2016 - SÃO PAULO, SP
No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) a nota da redação representa 20% do resultado final do candidato. Para avaliar as habilidades de escrita dos estudantes, a banca examinadora costuma selecionar temas atuais, discutidos no noticiário nacional ao longo do ano em que a prova foi elaborada.
"Os assuntos que aparecem nas redações são, normalmente, questões importantes que afetam a sociedade brasileira", explica Gisele Lemos, professora de redação do Curso Poliedro. "Por isso é bom ficar atento a leis, determinações ou modificações sociais que atinjam grupos específicos."
Para a professora, um caso exemplar foi o do Enem do ano passado, que teve como tema "a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira". Em março de 2015, havia sido sancionada uma lei que incluiu na lista de crimes hediondos (grupo de crimes tratados de forma mais severa, como o estupro e o genocídio) os casos de mulheres que foram assassinadas justamente pelo fato de serem mulheres. Antes desse dispositivo, chamada Lei do Feminicídio, a única lei especifica para agressão contra mulher era a Lei Maria da Penha, de 2006.
Ao abordar o tema, o Enem avalia cinco competências que, reunidas, vão compor a nota total da redação: domínio da norma culta, compreensão da proposta e escrita de um texto dissertativo, defesa de um ponto de vista com bons argumentos, conhecimento dos mecanismos linguísticos, e elaboração de uma proposta de intervenção para o problema em questão.
Dos 7,7 milhões de candidatos participantes do exame em 2015, mais de 53.000 tiraram nota zero na redação e apenas 104 tiraram 1.000, a pontuação máxima que um estudante pode obter. "Alguns alunos perderam ponto ou tiveram a nota zerada porque apresentaram argumentos que ferem os direitos humanos", disse Gisele.
Evolução
Ao longo dos anos, a prova de redação do Enem passou de temas mais abstratos, como o primeiro, de 1998, "viver e aprender", até chegar a propostas bastante específicas a partir de 2000.
"Com o tema 'direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafio nacional?', em 2000, ficou evidente a preocupação do Enem com o papel social do candidato e seu interesse por questões fundamentais para a população brasileira", afirma a professora. Naquele ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completava 10 anos.
Sobre o Enem 2016, Gisele acredita que o exame deve seguir o modelo de problematizar questões ligadas a minorias sociais. "O tema deve focar algum dos grupos que ainda não tem direitos específicos assegurados por lei", diz. O conselho da professora é que os candidatos fiquem atentos a mudanças nas leis brasileiras, ao noticiário e até a dados e estudos divulgados neste ano, principalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Espelho
Em junho deste ano, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) liberou a consulta do espelho de redação de 2015. Através desse documento o aluno pode conferir como foi seu desempenho em cada uma das habilidades exigidas. A primeira vez que o candidato teve acesso ao espelho foi no Enem 2012. Naquele ano, os casos de textos que tinham a receita de como cozinhar macarrão ou o hino do time de futebol Palmeiras questionaram os critérios de avaliação da banca examinadora. O tema era "O movimento imigratório para o Brasil no século XXI".
Confira todos os temas de redação na história do Enem:
1. 2015: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira
O tema exigia do candidato uma reflexão sobre os impactos na sociedade da persistência da violência contra as mulheres brasileiras. Diferente dos outros anos, segundo professores, o assunto só poderia ter um tipo de posicionamento: os argumentos deveriam ser contrários à violência. Em 2015, a Lei do Feminícidio foi sancionada e incluiu o assassinato de mulheres, motivado pela condição da vítima ser do sexo feminino, na lista de crimes hediondos (grupo de crimes tratados pela lei de forma mais severa, como o estupro e o genocídio).
2. 2014: Publicidade infantil em questão no Brasil
Para redigir o texto, os candidatos deveriam abordar o limite entre os direitos de crianças e adolescentes e a liberdade de expressão dos publicitários. Para a professora de redação Gisele Lemos, do Curso Poliedro, o tema foi inesperado. "Um dos problemas deste ano foi a correta interpretação do que a redação exigia", afirma. Naquele ano, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou no Diário Oficial da União uma resolução considerando abusiva a publicidade voltada a crianças e adolescentes. O Código de Defesa do Consumidor brasileiro proíbe a publicidade abusiva direcionada à criança desde 1990.
3. 2013: Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil
Sancionada em 2008, a Lei Seca tornou-se mais rígida no final de 2012. Partir de então passou a permitir a prisão do motorista no caso do bafômetro apontar mais de 0,34 miligramas de álcool por litro de ar.
4. 2012: O movimento imigratório para o Brasil no século XXI
A proposta exigia do candidato uma reflexão sobre o aumento do fluxo de imigrantes no Brasil. Segundo o Ministério da Justiça, em junho de 2011, o Brasil tinha 1,46 milhão de imigrantes em situação regular – um aumento de 52,4% em relação a dezembro de 2010, que contabilizava 961.877 estrangeiros. Os novos moradores eram principalmente do Haiti (país devastado por um terremoto em 2010), Peru e Bolívia. Os imigrantes buscavam melhores condições de vida e oportunidades de emprego.
5. 2011: Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado
A convivência social na internet foi o tema da redação. "Uma das maneiras de abordar o tema poderia ser fazendo uma avaliação do impacto das redes sociais nas relações humanas", afirma Gisele. Em 2011, a rede social Twitter liberou o sistema no qual os brasileiros podiam ajudar na tradução para o português do conteúdo do site. Além disso, em junho daquele ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que o acesso à internet era um direito humano, assim como educação e segurança.
6. 2010: O trabalho na construção da dignidade humana
Em 2010, um dos textos de apoio falava sobre trabalho escravo, observando que a prática não terminou com a assinatura da Lei Áurea, em 1888. Já outro texto apresentava uma previsão de como será o trabalho no futuro. Segundo Gisele Lemos, professora de redação do Curso Poliedro, a proposta, bastante ampla, pedia para discutir as leis trabalhistas no Brasil.
7. 2009: O indivíduo frente à ética nacional
Em 2009, houve uma grande reformulação para transformar o Enem em um processo seletivo para várias universidades brasileiras. A partir de então, o exame passou a ser realizado em dois dias, com um total de 180 questões de múltipla escolha, mais a prova de redação. O tema da redação que marcou a mudança foi o embate entre a ética no cotidiano de cada indivíduo e a corrupção. "A discussão do mensalão, descoberto em 2005, ainda era muito presente no noticiário brasileiro", afirma Gisele Lemos, professora de redação do Curso Poliedro. Os alunos poderiam, então, discutir a ética particular em contraste com a ética pública. Mensalão foi o nome dado ao esquema ilegal de financiamento político, ocorrido entre 2003 e 2004.
8. 2008: Como preservar a floresta Amazônica?
O tema levava o candidato a refletir sobre o ambiente, oferecendo três pontos de vista que serviriam como base de argumentação. O primeiro pregava a suspensão imediata do desmatamento; o segundo defendia incentivos financeiros a proprietários que parassem de desmatar; o terceiro previa o aumento da fiscalização. Para a professora de redação Gisele Lemos, do Curso Poliedro, o tema também recordava a morte do ativista Chico Mendes. O ano de 2008 marcou o aniversário de vinte anos do assassinato do ativista. O sindicalista e ambientalista brasileiro lutou a favor dos seringueiros da Bacia Amazônica, cuja existência dependia da preservação da floresta e das seringueiras nativas. "Para mim, um dos temas mais difíceis", afirma Gisele.
9. 2007: O desafio de se conviver com as diferenças
Em 2007, a proposta era discutir a convivência com diferentes culturas. Segundo Gisele, o candidato poderia abordar argumentos que mostrassem como respeitar o próximo, independente da sua religião ou nacionalidade. "O tema também pode ser associado à morte do brasileiro Jean Charles, que havia ocorrido dois anos atrás, em Londres", afirma a professora. O brasileiro foi assassinado pela Polícia de Londres, após ser confundido com um terrorista.
10. 2006: O poder de transformação da leitura
O objetivo era verificar de que forma o candidato expressava suas experiências de vida e transformava o passado em aprendizado para o futuro. A escolha do tema foi associada ao aniversário de dez anos da terceira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A LDB define e regulariza o sistema educacional brasileiro.
11. 2005: O trabalho infantil na sociedade brasileira
O assunto escolhido exigia dos candidatos não só uma postura crítica em relação ao assunto, mas também propostas de solução do problema que pudessem ser organizadas pela população — e não só pelo governo. "Neste tema o candidato poderia citar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)", afirma a professora de redação do Curso Poliedro, Gisele Lemos.
12. 2004: Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?
Neste ano, os textos de apoio apresentavam dados sobre programas sensacionalistas da TV e as consequências de uma possível fiscalização da imprensa. Em setembro de 2003, supostos integrantes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) deram uma entrevista ao programa `Domingo Legal`, do canal SBT. No final daquele mês, a Polícia Federal descobriu que a entrevista era uma farsa. O programa foi acusado pelo Ministério Público Federal de abuso da liberdade de imprensa e de ferir a ética ao dar voz ao crime.
13. 2003: A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo?
No Enem 2003, a redação exigia do candidato uma reflexão sobre a violência no Brasil, colocando textos de apoio que mostravam a desigualdade social e o ciclo de violência. Pela primeira vez, a proposta de redação apresentava estatísticas. "Associo a escolha do tema a dois momentos marcantes na história do Brasil: a morte do jornalista Tim Lopes e o lançamento do filme `Cidade de Deus`", afirma a professora de redação Gisele Lemos, do Curso Poliedro. Em julho de 2002, a polícia encontrou os ossos de Tim Lopes em um cemitério clandestino em uma comunidade do Rio de Janeiro, depois de um mês desaparecido. Lopes era repórter investigativo e fazia denúncias constantes sobre o tráfico de drogas e abuso de crianças e adolescentes em favelas cariocas. Sete bandidos foram presos acusados de sequestrar, torturar e matar Tim Lopes. Já o filme `Cidade de Deus`, do cineasta Fernando Meirelles, retrata o crime organizado na comunidade Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. O longa metragem estreou em agosto de 2002 e recebeu quatro indicações ao Oscar.
14. 2002: O direito de votar: como fazer dessa conquista um meio para promover as transformações sociais que o Brasil necessita?
A proposta de redação trazia textos que falavam sobre a democracia, luta social pelo direito de voto e a importância de escolher bem os representantes políticos. "O tema pode ser relacionado ao resultado das eleições para presidente daquele ano", afirma a professora de redação do Curso Poliedro, Gisele Lemos. Após oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Luís Inácio Lula da Silva, do Partido do Trabalhadores (PT), chegou
à Presidência da República, alterando a configuração da política no país.
15. 2001: Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar os interesses em conflito?
O tema tratava da interação do homem com a natureza. Em 2001, os Estados Unidos ficaram fora das negociações sobre o Protocolo de Quioto. O presidente na época era George W. Bush, que alegou que a permanência do país no acordo poderia prejudicar a economia americana. O Protocolo é um tratado internacional com compromissos de redução da emissão de gases que agravam o efeito estufa e foi criado em 1997.
16. 2000: Direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafio nacional?
O candidato deveria analisar a discriminação e a exploração que algumas crianças sofrem, fazendo um contraponto com os direitos e deveres garantidos por lei. Naquele ano o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completava 10 anos de sua criação. O ECA regulamenta os direitos das crianças e jovens no Brasil.
17. 1999: Cidadania e participação social
Nesta proposta, o candidato poderia usar argumentos que mostrassem que o futuro do país estava ligado à participação ativa dos jovens. "A banca examinadora gostaria de observar de que maneira o candidato participava da sociedade", afirma Gisele. "Ser cidadão não é só conhecer os seus direitos. É participar, ser dinâmico", dizia um dos textos de apoio.
18. 1998: Viver e aprender
O tema que incentivava reflexões sobre a vida foi o assunto da redação na primeira edição do Enem. A proposta trazia um trecho da letra da música "O que é, o que é?" do artista brasileiro Gonzaguinha. Para a professora do Curso Poliedro, Gisele Lemos, uma noticia da época que poderia estar ligada à redação era a publicação da clonagem do primeiro mamífero, a ovelha Dolly, em 1997, que colocou em questão o significado da vida e as possibilidades de humanos criarem outros seres vivos.